"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro." É assim que começa Aparição, livro escrito por Vergílio Ferreira e publicado em 1959. Livro cuja leitura eu preferia tê-la feito de forma mais pausada, respirada e partilhada. É um livro tão denso, que qualquer coisa que eu tente escrever sobre a minha experiência com ele vai limitar-se a isso mesmo, ao meu encontro com estas palavras.
Este clássico da literatura portuguesa é circular no sentido em que da mesma forma que começa, assim termina, ou seja, com o narrador sozinho numa sala vazia a lembrar o passado e a escrever-nos o que aconteceu. E a isto associo a ideia que o autor traz mais perto do final do livro, relativamente ao tempo e à forma como o passado, presente e futuro se ligam àquilo que somos.
"Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o que agora me projeto?"
Este é um livro em que o próprio narrador está inserido no enredo e em que vamos saltitando para trás e para a frente, conforme as suas ideias se vão desenlaçando ao contar-nos a sua história. História essa que engloba o período em que este homem (protagonista e narrador), Alberto Soares, se muda para Évora para dar aulas no liceu durante um ano letivo. Não sabemos exatamente qual a sua terra natal, embora acredite que se esteja a referir a alguma localidade perto da Serra da Estrela. Curiosamente, o próprio Vergílio Ferreira, nascido em Gouveia, chegou também ele a dar aulas em Évora.
Em termos do enredo, acompanhamos Alberto nesta mudança para uma cidade alentejana, cheia de planícies contrastantes com a montanha que vê a partir da janela de casa dos seus pais. Com esta mudança, Alberto traz consigo o luto recente do pai, que virá contrastar com a descrição que ele mesmo nos faz de Évora, uma cidade cheia de sol e de luz.
Em Évora, o círculo de relações de Alberto cinge-se essencialmente à família do Dr. Moura, antigo amigo do seu pai, nomeadamente às suas três filhas: Ana, Sofia e Cristina. Além destas pessoas, temos ainda o marido de Ana (Alfredo), uma amigo da família (Chico) e um aluno de Alberto (Carolino). A sensação que temos ao ler este livro é a de que Alberto veio abanar a dormência em que estas personagens se encontravam, trazendo para o seio das conversas as suas dúvidas e inquietações, tendo isso impacto no percurso de vida das mesmas.
Tais inquietações enquadram-se no existencialismo e na constante busca de si mesmo. Ao longo do livro, Alberto vai-nos expondo momentos da sua vida que o fizeram "ver", trazendo consigo longas reflexões acerca do que será a vida, do que é o "eu" e essencialmente acerca da inquietação de viver sabendo que inerente à vida está a morte. Talvez a resposta para isso (o que quer que "isso" seja) esteja muitas vezes naquilo que Cristina representa e no poder da arte. Também não sei.
"E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer."
Este é um livro que demora a assentar em nós. A partir de certa altura já não o consegui largar até terminar, mas confesso que em várias alturas me senti meio inquieta à procura de um sentido para aquilo que estava a ler. Talvez até tenha sido esse o propósito. Agora, depois da primeira leitura e de ter procurado o que outros olhos viram nele e na escrita do autor, sinto-me mais preparada para iniciar novamente a leitura. Não o irei fazer já, porque outros livros esticam os braços e gritam por mim desde a estante, mas este é de releitura obrigatória.