quinta-feira, 28 de maio de 2020

Obras Completas (volume 1), Maria Judite de Carvalho


"Para mais essa experiência, a da vida, foi sempre para mim demasiado difícil. Nunca me habituei a ela e isso é estranho porque todas as pessoas a consideram uma coisa simples e natural, a mais natural e mais simples de todas quantas existem. Eu fiz sempre cerimónia e não procedi por isso como devia, como procediam as outras pessoas, mesmo as mais broncas e as mais rudes, com à-vontade. Falei alto quando as regras mais elementares mandavam falar baixo, calei-me quando devia absolutamente dizer alguma coisa, não soube estar. Eu, de facto, nunca soube estar. Escolhi sempre mal as ocasiões para falar e para ficar calada. Troquei tudo, baralhei todas as coisas a ponto de não me achar a mim própria."


Sinto-me tão pequenina ao lado da escrita da Maria Judite, que não acredito ser capaz de articular alguma coisa que faça jus àquilo que encontrarão ao abrir um livro dela. É sempre marcante quando estou a ler um livro e me surpreendo comigo mesma lá no meio, sem quaisquer sinais de aviso. 

No fundo, é por isto que eu leio. É incrível sentirmo-nos ligados a alguém através das palavras. E alguém que as escreveu noutro sítio, noutros tempos, noutra pele, mas que afinal não é assim tão diferente de nós. E que forma tão bonita de usar as palavras! A escrita da Maria Judite de Carvalho é muito especial. Tenho vontade de a oferecer a toda a gente e ao mesmo tempo guardá-la só para mim. Há muito tempo que não me apaixonava assim pela escrita de alguém. E logo à primeira página! E também há muito tempo que não me emocionava ao ler um livro. Aliás, antes deste, não me lembro da última vez.

Felizmente, toda a obra da autora foi recentemente reeditada e publicada em seis volumes, por isso ainda tenho mais por onde ir depois deste. Escreveu maioritariamente contos e novelas, mas também algumas crónicas, poesia e uma peça de teatro. Neste primeiro volume estão os primeiros livros, "Tanta Gente, Mariana" (1959) e "As Palavras Poupadas" (1961). Fui conquistada logo com "Tanta Gente, Mariana", cujas palavras fui sublinhando (à semelhança do resto do livro) e vou agora relendo aos poucos, relembrando-me sempre da vontade que senti de poupar este livro enquanto o lia. Não queria de todo que ele chegasse ao fim, embora saiba que tenho cinco volumes à minha frente. Mas estava-se tão bem ali.

Sendo um livro de contos, não me faz sentido procurar resumir o que neles é abordado. Apesar de também escrever sob a perspetiva masculina, a maioria das personagens destes contos são mulheres que estão fora do trilho que havia sido traçado para a mulher portuguesa de meados do século XX. Através de todas elas, e de uma forma muito profunda, entramos em contacto com várias angústias inerentes à condição humana e à existência tal como ela é. Todos nós temos partes nossas que não partilhamos com ninguém e é aí que a escrita da Maria Judite vai.

Essa audácia expressa na sua obra é algo ainda mais incrível se formos a considerar a época em que foi escrita e o papel da mulher nessa altura. É admirável e inspirador encontrar alguém assim. Alguém que escreve uma obra como "Tanta Gente, Mariana", que foi, como o seu Urbano a viria a descrever, "uma espécie de bomba, sem excessos verbais, que caiu sobre o marasmo da sociedade portuguesa do final dos anos cinquenta, com uma ironia dolorosa, por vezes ácida, denunciando as frustrações e contidas mágoas da mulher portuguesa entregue aos caprichos masculinos e aos «brandos costumes» da hipócrita moral salazarista".

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Primo Basílio, Eça de Queiroz

Desde "Os Maias" que tinha saudades da escrita do Eça de Queiroz e "O Primo Basílio" era o livro que tinha aqui por ler na estante há uns anos. Foi-me recomendado como um "livro engraçado" e agora, depois de lido, posso dizer que concordo, até porque o sentido de humor é um dos aspetos que sempre associei à escrita do Eça. Isto especialmente no sentido em que ele muitas vezes ridiculariza as personagens, algo semelhante, na minha opinião, à escrita do meu querido Charles Dickens.

Resumindo o enredo desta história, nela começamos por entrar na casa deste casal burguês lisboeta, a Luísa e o Jorge. A leviandade das conversas entre eles, os problemas que os atormentam, tudo tão típico daquela sociedade da altura, levaram-me involuntariamente a ler as primeiras páginas do livro com aquela voz meio nasalada e muito chic. Acredito que o Eça tenha feito de propósito!

Com o desenvolver do livro fui-me ligando mais a estas personagens, embora a que me tenha despertado mais interesse tenha sido a Juliana, uma das criadas da casa. Quanto ao casal, este tem uma vida normal dentro daquilo que é esperado deles e da sua classe social. Ele tem uns negócios, ela fica em casa o dia todo, recebe pessoas, falam da vida dos outros e daquilo que no momento está a ser mais falado na moda e nas artes. Nestas conversas vamos notando a valorização cega e sem espírito crítico de algumas tendências que vêm do exterior, o que é também perceptível através do constante uso de estrangeirismos. É tudo muito chic.

Esta vida calma e pacata é virada do avesso quando Jorge precisa de se ausentar por questões profissionais, partindo para o Alentejo por uns tempos e deixando Luísa sozinha com o tédio dos dias. É nesta altura que volta a aparecer na sua vida uma pessoa que virá agitar as águas e trazer-lhe muitas noites mal dormidas. Bem aconchegadas, mas mal dormidas.

Este é um livro que explora alguns temas que já estamos habituados a ver associados à sociedade burguesa portuguesa do século XIX. Eça é conhecido pela crítica social que faz nas suas obras e neste livro essa crítica é especialmente aguçada. Aborda temas como a falta de espírito crítico, o adultério, a mesquinhez, a inveja, a disparidade entre classes sociais (mas que sendo todos seres humanos, têm também aspetos em comum), a vida de aparências, a falsa moralidade e a hipocrisia.

personagens desprezíveis neste livro - a maioria, diria eu. No entanto, despertam-nos interesse e motivam muito a vontade de continuar a leitura. Houve uma parte do livro em que o meu ritmo abrandou um pouco, mas rapidamente a ultrapassei e, fora esse momento, foi um livro que li num ápice. Até porque a certa altura estava desejosa de saber como é que a Luísa ia desatar aquele nó. E Eça resolveu muito bem esta história e terminou-a de uma forma que me agradou.

A minha edição tem no final uma preciosa carta escrita pelo Eça a Teófilo Braga, em que este se mostra surpreendido pelo interesse do amigo e escritor por esta obra e em que fala um pouco de como tentou fazer um retrato de um conjunto de pessoas tão típicas, que qualquer um deles conheceria alguém semelhante. É muito engraçado ver o autor falar da própria obra. Passei um bom bocado com este livro e recomendo muito a quem gosta de Eça.