sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Carta ao Pai, Franz Kafka


Finalmente, chegou a altura de vos falar sobre o Carta ao Pai, do F. Kafka. Devo começar por dizer que me senti uma intrusa por estar a ler correspondência alheia, que nem era suposto ter sido publicada e que, possivelmente, só o foi, porque o autor já cá não estava para o impedir. Mas pronto, ainda bem que está disponível e que decidi pegar-lhe numa das minhas últimas idas à biblioteca.

A carta começa com o Kafka a revelar que sempre teve medo do pai, embora não lhe consiga explicar o porquê. Eventualmente, vamos percebendo que este pai é tido como uma figura muito autoritária e tirana, um crítico, alguém que foi fazendo com que este filho se sentisse sem confiança nele próprio, duvidando até dos seus sucessos e conquistas. Diz que o pai nunca teria tido qualquer razão para o acusar de algum mau comportamento, acusando-o apenas de afastamento, frieza e ingratidão.

"(...) mas esperavas pelo menos alguma amabilidade da nossa parte, um sinal da nossa compaixão; em vez disso sempre me escondi de ti, no meu quarto, com os meus livros, com os meus amigos malucos, com ideias exageradas." (p. 8)

Algo impossível de ignorar é a forma como o Kafka se vai dirigindo ao pai ao longo da carta. É tão claro o peso da culpa. Além de se referir a ele como um tirano, está constantemente a sublinhar que, com aquilo que vai dizendo, não está a querer culpar o pai de nada, embora certas vezes seja clara a maldade nos comportamentos ou comentários do mesmo.

Além disto, vai fazendo diversas comparações entre si e o pai, dizendo como sempre se sentiu inferior em diversos aspetos, como sempre sentiu que o pai gostaria que ele tivesse sido de outra forma, o que era visível, segundo ele, na forma como o pai valorizava apenas aquilo que o filho fazia, que fosse ao encontro dos seus interesses. Isto é mencionado em relação a uma série de coisas e também no que toca às amizades e relações amorosas. O pai era bastante crítico, estando constantemente a desvalorizar os seus amigos, como se o filho nem para escolher amizades fosse bom.

"A tua simples presença física oprimia-me. Lembro-me, por exemplo, de como por vezes nos despíamos os dois no vestiário. Eu era magro, fraco, franzino e tu forte, grande, encorpado. Ainda lá dentro já me sentia miserável. Não só à tua frente, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras para mim a medida de todas as coisas." (p. 16)

São relatados vários episódios em que o Kafka se sentiu negligenciado, humilhado, inferiorizado e maltratado de alguma forma por parte do pai. Fala da sua baixa autoestima e da falta de confiança que tinha no que fazia, referindo que bastava um comentário depreciativo do pai, para que ele sentisse que o fracasso era inevitável ("provar a minha insignificância"). Neste contexto, faz também uma referência à maneira como o pai sempre desacreditou a sua escrita e sobre como escrever lhe permitiu lidar com esta relação.

Gostei muito de ler este livro. Teria dado uma boa aula no meu mestrado ou uma boa sessão de supervisão! Todo o trabalho de autoanálise aqui feito pelo Kafka é extraordinário. É claro que o que lemos diz respeito apenas à sua perspetiva em relação aos acontecimentos, mas na verdade muitas das vezes é isso que importa. É a forma como as coisas são lembradas, como ficaram marcadas, que dita muito daquilo que se sente. Aliás, durante esta leitura, estive o tempo todo a pensar no quão útil seria para muitas pessoas escreverem algo deste género.

Enfim, é um livro que recomendo muito a qualquer pessoa, principalmente a quem tiver curiosidade em relação à pessoa por detrás da obra. Agora fiquei ainda com mais vontade de continuar a explorar os seus outros livros publicados.

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