Queria ler outros livros enquanto leio o Anna Karenina, para conseguir ir mantendo o blog activo. Assim, e como já não lia um livro de um autor português há bastante tempo, decidi procurar este livro de Gonçalo M. Tavares na biblioteca. Além de me ter sido recomendado por uma pessoa com um gosto no qual confio, o livro Jerusalém foi premiado em 2007, com o Prémio Portugal Telecom de Literatura, e na sua contra-capa tem um pequeno excerto do discurso de José Saramago na atribuição desse prémio.
"Jerusalém é um grande livro, que pertence à grande literatura ocidental. Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!"
José Saramago
(discurso de atribuição do Prémio)
É difícil fazer um resumo da história sem vos dar alguns spoilers. Isto porque a história não é contada de forma contínua. O que significa que durante algumas páginas o leitor anda um pouco perdido, sem saber ao certo qual a ligação entre os personagens e os acontecimentos narrados.
Resumidamente, este livro narra a história de várias personagens e de como estas se vão cruzando. Diria que o enredo principal seria aquele que é protagonizado pela Mylia e pelo Ernst Spengler.
Mylia considerava-se esquizofrénica e foi assim que se apresentou ao médico que viria a ser o seu futuro marido (e ex-marido), Theodor Busbeck. Eventualmente, Theodor acaba por decidir livrar-se da mulher louca com quem casou e interná-la no mais conceituado hospício da cidade. Isto porque considerava que esta não era uma mulher saudável e que a sua ligação a ela iria manchar o seu nome, coisa que para ele era bastante importante, sendo ele um investigador muito conhecido.
É neste hospício que Mylia conhece Ernst, um homem com um andar bastante peculiar e que lhe marcará para o resto da sua vida.
"Ela que está com a morte fechada num sítio de onde já não sai; ela quer precisamente o perigo, aquilo que ainda a excite, que ainda revele nela energia suplementar."
Além destes personagens, Hanna, uma prostituta que vive com Hinnerk, um homem que combateu na guerra e que trouxe desta o medo com que vive diariamente. Não quero contar mais sobre o desenrolar da história, porque não quero mesmo estragar nenhum momento para quem for ler este livro. É uma história que envolve loucura, dor e até traição, não me referindo apenas ao adultério, mas também a outros tipos de traição.
"Hanna não pintava as pálpebras de cor roxa para ser amada, mas sim para que a solidão de um homem visse ali uma interrupção exuberante."
Quanto à história, acho que vale muito a pena. Inicialmente passei algumas dificuldades e cheguei mesmo a achar que este livro ia ser uma desilusão, porque não conseguia perceber nada da história. Isto porque num capítulo temos vários personagens e vários acontecimentos que, aparentemente, não têm nexo ou ligação, mas que com o desenrolar da história vai-nos sendo explicada a maneira como estes se interligam uns com os outros. O autor dá muitos saltos temporais e, por isso, inicialmente achei um pouco confuso, mas rapidamente começam a aparecer novos dados e já dá para ir construindo o puzzle desta história.
Já a escrita do autor é fantástica, recheada de metáforas. Adorei especialmente a construção dos personagens, que, na minha opinião, foi muito bem feita e de uma forma bastante aprofundada.
Outro aspecto importante que já me esquecia de mencionar é que este livro é o terceiro volume de uma tetralogia chamada O Reino, facto que eu só soube quando estava em casa já com o livro para ler. Contudo, decidi lê-lo na mesma e não senti falta de qualquer detalhe que possivelmente estará nos dois volumes anteriores. Além disso, no fim do livro há pequenos excertos dos outros livros da série e não me parece haver grande ligação entre eles. Por isso, acho que não há problema algum em ler este livro individualmente.
"É Gada que fala. Tem quinze anos.
Entro e saio daqui. Abrem-me como uma porta e fecham-me. Fui operado durante onze anos. Dezassete vezes. Fizeram de mim uma porta durante onze anos. Abriam-me e fechavam-me. Abriam-me e fechavam-me. Também faziam da minha cabeça uma porta.
É Gada, tem quinze anos, uma cicatriz na cabeça."