Sinto-me tão pequenina ao lado da escrita da Maria Judite, que não acredito ser capaz de articular alguma coisa que faça jus àquilo que encontrarão ao abrir um livro dela. É sempre marcante quando estou a ler um livro e me surpreendo comigo mesma lá no meio, sem quaisquer sinais de aviso.
No fundo, é por isto que eu leio. É incrível sentirmo-nos ligados a alguém através das palavras. E alguém que as escreveu noutro sítio, noutros tempos, noutra pele, mas que afinal não é assim tão diferente de nós. E que forma tão bonita de usar as palavras! A escrita da Maria Judite de Carvalho é muito especial. Tenho vontade de a oferecer a toda a gente e ao mesmo tempo guardá-la só para mim. Há muito tempo que não me apaixonava assim pela escrita de alguém. E logo à primeira página! E também há muito tempo que não me emocionava ao ler um livro. Aliás, antes deste, não me lembro da última vez.
Felizmente, toda a obra da autora foi recentemente reeditada e publicada em seis volumes, por isso ainda tenho mais por onde ir depois deste. Escreveu maioritariamente contos e novelas, mas também algumas crónicas, poesia e uma peça de teatro. Neste primeiro volume estão os primeiros livros, "Tanta Gente, Mariana" (1959) e "As Palavras Poupadas" (1961). Fui conquistada logo com "Tanta Gente, Mariana", cujas palavras fui sublinhando (à semelhança do resto do livro) e vou agora relendo aos poucos, relembrando-me sempre da vontade que senti de poupar este livro enquanto o lia. Não queria de todo que ele chegasse ao fim, embora saiba que tenho cinco volumes à minha frente. Mas estava-se tão bem ali.
Sendo um livro de contos, não me faz sentido procurar resumir o que neles é abordado. Apesar de também escrever sob a perspetiva masculina, a maioria das personagens destes contos são mulheres que estão fora do trilho que havia sido traçado para a mulher portuguesa de meados do século XX. Através de todas elas, e de uma forma muito profunda, entramos em contacto com várias angústias inerentes à condição humana e à existência tal como ela é. Todos nós temos partes nossas que não partilhamos com ninguém e é aí que a escrita da Maria Judite vai.
Essa audácia expressa na sua obra é algo ainda mais incrível se formos a considerar a época em que foi escrita e o papel da mulher nessa altura. É admirável e inspirador encontrar alguém assim. Alguém que escreve uma obra como "Tanta Gente, Mariana", que foi, como o seu Urbano a viria a descrever, "uma espécie de bomba, sem excessos verbais, que caiu sobre o marasmo da sociedade portuguesa do final dos anos cinquenta, com uma ironia dolorosa, por vezes ácida, denunciando as frustrações e contidas mágoas da mulher portuguesa entregue aos caprichos masculinos e aos «brandos costumes» da hipócrita moral salazarista".